ARTIGOS
O documento tornado público pela imprensa, de que o Governo Federal possui uma lista em que separa influenciadores/jornalistas em “detratores”, “neutros informativos” e “favoráveis”, foi suficiente para trazer aos jornalistas, enquanto classe trabalhadora, memórias de outros tempos em que não podíamos exercer o Jornalismo em sua plenitude, nos quais versões oficiais sobrepunham aquilo que precisaria de checagem e confirmação, o direito ao contraditório e mesmo à crítica. O “listão de detratores” é mais um capítulo na truncada e atrapalhada relação do Governo com a imprensa nacional.
Relatórios sobre cenários de imprensa, clippings, banco de dados e outras práticas foram e são comuns aos governos. Até aí, nada de novo. Porém, a classificação descarada entre detratores, neutros e favoráveis, foi o suficiente para que a categoria de jornalistas se pusesse atenta para tal prática, feita com dinheiro público e sem um objetivo claro. Aliás, até aparenta ter algum objetivo: apaziguar a imprensa para que esta não seja contrária às atitudes que o Governo venha a ter e que sejam alvos de críticas.
É como se o Governo pensasse estar acima de julgamentos (de qualquer julgamento), e o objetivo fosse calar as oposições, como bem fizeram regimes totalitários das mais diversas bandeiras e nuances políticas na história da humanidade.
De modo habitual, os governos têm seus dossiês com possíveis ameaças exercidas por jornais e/ou jornalistas. O difícil nesse contexto é separar e categorizar, como tentou fazer o atual governo, os jornalistas em favoráveis ou desfavoráveis. Seriam favoráveis a quem? Desfavoráveis a quem? Ao mandatário? Ao Estado? Aos interesses da população? Que interesses seriam esses? A quem querem que a imprensa sirva? Como objetivar o que é subjetivo por essência?
Um fragmento
Em 1945, Joel Silveira, correspondente junto à Força Expedicionária Brasileira – FEB, que combatia o nazifascismo na Itália, se deslocou até a cidade de Florença e foi visitar os arquivos da Polícia Política fascista. Os documentos estavam em poder de membros da Resistência italiana, os Partigiani.
Ali estavam pastas e mais pastas com dados pessoais de italianos tidos como inimigos do antigo regime. Também havia um número da revista de oposição “Quadrante”, que explicava a utilidade daqueles levantamentos. Joel transcreveu um trecho que dizia: “(...) o fichado não encontrava mais trabalho, devia abandonar sua casa, fugir, refugiar-se para não ser preso ou deportado”.
Joel disse que gostaria de ver o mesmo armário de Getúlio Vargas, onde certamente constaria o nome dele e de outros colegas que eram contrários ao Estado Novo, que até certo ponto, apresentava algumas semelhanças com preceitos autoritários dos regimes europeus que estavam sendo combatidos pelos brasileiros na II Guerra. “Gostaria, particularmente, de ver de perto uma fabulosa ‘ficha preventiva’ que sei existir em qualquer armário da Rua da Relação, com retratinhos e qualidades deste correspondente, brinde da polícia do Major Filinto Muller, creio”.
Coincidentemente, pouco mais de 20 anos depois do final da II Guerra e daquela visita à Florença, o próprio Joel foi preso três vezes durante a ditadura civil-militar (1964-1985), sob acusação de subversão. Alguns desses documentos da prisão do jornalista estão disponíveis para consulta pública no Sistema de Informações do Arquivo Nacional.
É interessante perceber que alguns daqueles militares, que tanto se esforçaram para combater o nazifascismo na II Guerra Mundial e que, na época, estavam em cargos de confiança do Governo Federal na década de 1960, durante a ditadura, prendiam pessoas que pensavam diferente, brasileiros que eles enxergavam como ameaças ao regime, fazendo exatamente como os inimigos faziam décadas antes na Itália.
Reproduzo um trecho de monitoramento que era feito pelos militares em cima de Joel, que nunca foi filiado ao Partido Comunista:
“Comunista; jornalista militante de grande atuação, com colunas assinadas; especialmente depois da revolução de março, procurou desmoralizar a classe militar perante o povo; assinou manifestos e participou de todos os movimentos de opinião orientados pela esquerda e pelos comunistas. (...) É anti-revolucionário; é esquerdista: participou de todos os movimentos de intelectuais contra a forma de governo estabelecida pela revolução de 31 de março de 1964; está ligado a notórios comunistas; em seus artigos nos jornais, ataca sistematicamente a autoridade do governo e as forças armadas, procurando incompatibilizá-los com o povo”. Assinou o documento, o general de Brigada, João Batista de Oliveira Figueiredo, secretário-geral do Conselho de Segurança Nacional, e que mais tarde seria presidente do Brasil.
O calendário marcava 30 de outubro de 1969 e Joel já estava com 51 anos de idade. O jornalista era liberado das prisões, não ficava tanto tempo, pois o pessoal respeitava sua condição de ex-correspondente de guerra.
Paralelos
Não quero nestas poucas linhas cometer anacronismos e comparar o Governo atual com os governos autoritários de outros tempos. O Brasil de hoje é outro (ou pelo menos deveria ser). O problema é que separar pessoas em categorias que as coloquem como eventuais ameaças, e tentar calá-las com ações direcionadas que levem ao silenciamento de suas vozes, ainda que sob o pretexto de melhorar a imagem do Governo e de apresentar "verdades" diferentes das que elas repercutem, é, no mínimo, contraditório ao estado democrático.
Um governo e um governante que se prestam ao papel de comandar uma nação, precisam entender que não estão acima de qualquer análise e que muitas vezes são essas apreciações que os ajudarão a melhorar o próprio trabalho, pago com o dinheiro do contribuinte.
Não se governa para poucos. Isso deveria ser ponto consolidado para um chefe de estado. Colocar os jornalistas em exposição, como o relatório faz indiretamente, é tentar mostrar para a base de apoio governamental que aquelas pessoas não merecem atenção, pois, são dissonantes da narrativa que se pretende estabelecer.
Goste ou não goste de determinado jornal ou de determinado jornalista, uma classificação como a que foi feita e tornada pública, mostra que o atual Governo não está disposto a ouvir vozes contrárias, que prefere os aplausos dos favoráveis, grupo para o qual é sugerido, por exemplo, que sejam feitas ações, posts e lives conjuntas em benefício do Governo.
As “parcerias” seriam gratuitas? Seria um eufemismo para o direcionamento de verbas publicitárias somente para quem falasse bem do governo?
Essa tentativa de controle de narrativa só serve para um fim: a perpetuação do poder pelo poder, uma atitude que o atual Governo brasileiro tanto critica em outros países com orientação mais à esquerda. Esta coligação parece entender que tais práticas só são ruins quando são feitas no quintal dos vizinhos, afinal, a censura só é válida quando não põe em risco o próprio reflexo no espelho, que mostra uma imagem distorcida.
E quem acusa essa falha, essa imagem distorcida, é detrator, é inimigo, é pequeno socialmente, é tudo aquilo que o Governo parece não querer que as outras pessoas se tornem: realistas e sensatas.
Se eu pudesse dizer algo ao Governo (e não precisa me pagar R$ 2,7 milhões do dinheiro público para isso), seria que aprendesse mais com as críticas e parasse de agir como criança mimada que não se conforma quando tem um ato reprovado. E sendo um pouco mais atrevido, e podendo dizer algo mais, eu diria que não repetisse os erros do passado, que não fizesse uso das fórmulas ultrapassadas de controle da imprensa, que parassem de perseguir quem pensa diferente, ainda que seja uma perseguição velada, indireta, de exposição ao linchamento público.
Que o governo aprenda mais com os erros do passado e pare de querer inventar um futuro fictício e com um roteiro cheio de incongruências. A imprensa continuará existindo, apesar e independente de quem esteja no comando do país.
Primeira imagem (acervo do autor): parte da ficha de Joel Silveira, com fotos dele ao ser preso
Segunda imagem (acervo do autor): recomendação para cassação dos direitos políticos de Joel Silveira, com base nos “crimes” de subversão