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ARTIGOS

Autor: Aline de Oliveira Rios
13/05/2025

Sobre verdades amargas que bombons não são capazes de adoçar

Partiu da jornalista Aline Reis - a primeira negra e a terceira mulher a assumir a presidência do SindijorPR em 80 anos de história – a provocação para que eu escrevesse esse texto. A oportunidade de colocar o dedo em uma ferida que não apenas dói, mas também sangra em cada mulher que vive o dilema de dar conta de todas as obrigações, culturais e sociais, que historicamente são impostas a nós e cujo peso se multiplica quando (ora só) nos ‘atrevemos’ a ingressar no domínio que se pretende masculino, dessa entidade nem tão abstrata a que nos referimos como mercado de trabalho.


Pois bem, vamos definir um ponto de partida e seguir daqui. Uma primeira reflexão que eu gostaria de propor antes de ingressar na questão da maternidade propriamente dita é: quem são as mulheres que cabem no ‘mercado de trabalho’ no setor jornalístico do Paraná? E quem são aquelas que têm ficado do lado de fora? Dados recortados a partir do Perfil do Jornalista Brasileiro 2021 – estudo a partir do qual trabalhamos com o pesquisador Samuel Pantoja Lima, no programa de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina – indicam que 89,3%, ou seja, a maioria, são pessoas brancas, solteiras (42,8%) e sem filhos (56,7%). Se formos adicionar a essa equação aquelas que não se enquadram no conservador binário masculino-feminino e que insiste em ignorar outras identidades de gênero, a condição é de profunda invisibilidade. Já temos aqui um ponto nevrálgico: nem todas as mulheres conseguem acessar ou permanecer no mercado de trabalho jornalístico no Paraná – independente se têm filhos ou não.



Outra constatação necessária, para acabarmos com qualquer perspectiva ingênua, é compreender por que enquanto os homens frequentemente ganham os melhores salários e têm os melhores postos de trabalho, enfrentamos uma condição de precariedade laboral cotidiana. Emprestamos aqui as reflexões necessárias da filósofa Silvia Federici para descortinar essa questão. O trabalho não-remunerado, generificado e invisibilizado doméstico, sexual (no sentido ‘bíblico’) e de cuidados desempenhado por nós, mulheres, não apenas viabiliza, como sustenta, assegura e patrocina o ‘sucesso masculino’ em sociedade. Você não leu errado! Olhe ao redor e se pergunte quantos dos seus colegas de redação acumulam as mesmas responsabilidades que você? Quantos precisam se preocupar em manter a casa em ordem, se os armários têm alimentos e se as crianças estão com as vacinas em dia? Quantos efetivamente assumiram os filhos? Quantos têm a responsabilidade de sustentar lares monoparentais?


Vamos além... Quantos dos seus colegas homens precisarão responder em uma entrevista de emprego questões (que as entidades de defesa da classe trabalhadora reprovam e vêm buscando coibir) como: “Você é casada? Tem filhos? Quem cuida das suas crianças? Com quem as crianças vão ficar para você trabalhar?”. Isso, obviamente, quando a mulher jornalista ‘consegue’ avançar num processo seletivo. Algumas, simplesmente não passam do ponto em que o currículo é cadastrado numa plataforma ou enviado diretamente para o setor de contratação.


Somos altamente qualificadas. O Perfil do Jornalista Brasileiro revela que 70% das jornalistas paranaenses avançam para além da graduação – o que autoras e autores vêm considerando como uma estratégia de compensação de gênero. No entanto, esse investimento em formação não vem se revertendo em reconhecimento, oportunidade e políticas mínimas de igualdade. Somos as mais afetadas pela precarização, informalidade (que reduz a proteção social), lógicas de violência, assédios moral e sexual, cerceamento, constrangimentos e adoecimento.



Não podemos deixar de mencionar aqui que desde a pandemia de covid-19, as profissionais vêm adoecendo e eu arriscaria dizer que muito em função das condições de trabalho. No Brasil recente, as primeiras a serem afetadas pela crise sanitária foram justamente as trabalhadoras. Se até 2019 a participação feminina no mercado de trabalho vinha crescendo, com a declaração da pandemia, milhões de profissionais deixaram seus postos; porque foram demitidas ou porque simplesmente precisaram sair do emprego e assumir cuidados sobre outras pessoas da família, especialmente crianças, uma vez que a política de isolamento demandou a transferência das atividades escolares para o ambiente doméstico. Segundo o Relatório Especial COVID-19 N? 9: A autonomia econômica das mulheres na recuperação sustentável e com igualdade, elaborado pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), a participação de mulheres no mercado de trabalho atingiu 46% naquele momento, o que representou um retrocesso de mais de uma década – infelizmente, ainda não superado.


Especificamente no caso das jornalistas, as que conseguiram se manter ativas profissionalmente tiveram que transpor ainda o medo e o risco cotidianos – no caso do Paraná asseverado pelos cortes salariais que não respeitaram integralmente a redução de jornada, nem tampouco preservaram trabalhadores das demissões no período. As perdas salariais acumuladas desde então, aferidas em 10,41% pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), ainda assombram toda a categoria no estado, diga-se de passagem.


Mas e as jornalistas que são mães? Conforme o Perfil do Jornalista Brasileiro, essa é a realidade de pouco mais de 43% das profissionais em atividade no Paraná. E para aquelas que conseguem (a duras penas) preservar seus postos no mercado – já que a Fundação Getúlio Vargas (FGV) demonstrou que metade das mães trabalhadoras é demitida em até dois após o encerramento da licença-maternidade – o ambiente de trabalho se torna minado e altamente tóxico. Isso porque não cabe no imaginário da sociedade uma questão óbvia: muitos se dizem favoráveis à vida e apertam os dentes para fazer coro em defesa da infância, mas se esquecem de um aspecto bastante elementar que diz respeito ao fato de que para proteger as crianças, é preciso resguardar a maternidade.


É necessário garantir, portanto, que essas mulheres tenham condições de prestar cuidados aos filhos quando estes precisam. Entretanto, aparentemente, o trabalho de reprodução, que garante a sobrevivência e o suporte à vida para que nossas crianças atinjam a idade adulta em condição de ‘servir ao mercado’ como futuros consumidores ou como exército proletário, segue sendo ignorado. “Queremos os seus filhos, mas não queremos nos incomodar com eles”. “Vocês que escolham: ou trabalham ou cuidam dos filhos. A empresa não tem nada com isso”. “Por que foi abrir as pernas?” – como eu lamentavelmente ouvi nas dependências de uma empresa de comunicação respeitadíssima no Paraná. É a mais perfeita tradução da hipocrisia. Não. Bombons não servem. Tampouco rosas ou qualquer outra quinquilharia dessas que a gente sempre vê por aí em datas como o Dia das Mães.


Temos, portanto, enquanto sociedade, o árduo dever de enfrentar essas contradições e propor políticas públicas efetivas, que assegurem o trabalho feminino digno e decente, resguardando, por conseguinte, as nossas crianças. O Painel do Relatório da Transparência Salarial referente ao segundo semestre de 2024, publicizado pelo Ministério do Trabalho e Emprego, revela que no setor de serviços de informação, em que se enquadra a atividade jornalística, no Paraná, as mulheres têm salários 27,9% menores que aqueles pagos aos homens para as mesmas funções. E essa falta de proporção não diz respeito somente à remuneração, já que muitas colegas relatam assimetrias na distribuição de supostos benefícios, como o acesso à incentivos para qualificação, direito de escolher folgas, abono de faltas para frequentar cursos.


Os dados gerais do Relatório de Transparência Salarial citado acima também revelam que o Paraná como um todo (e não apenas as empresas de Comunicação) passa longe no que se refere às políticas para ampliar a participação feminina no mercado de trabalho. O incentivo para a contratação de mulheres, por exemplo, ocorre em 28,1% das organizações empregadoras. Apenas um terço das empresas apresenta ações concretas para a promoção de mulheres aos postos de chefia e cargos de gerência. E o incentivo para a contratação de mulheres chefes de família não chega a 20%. Temos um longo caminho pela frente.


Eu poderia escrever várias outras coisas tão duras quanto as descritas até aqui, mas como admiradora de Paulo Freire, sou sempre tentada a ‘esperançar’. E a minha fonte de esperança vem da conscientização e organização da classe trabalhadora. Precisamos entender como as práticas das empresas afetam a atuação feminina no mercado de trabalho, a maternidade e a infância. Alguém aí parou para pensar que a ampliação da licença-paternidade não se trata apenas de uma demanda masculina? Já se perguntaram o quanto a escala 6x1 pode ser dura para as mulheres que, além do exercício de uma atividade profissional, lidam com atividades domésticas e o trabalho não-remunerado de cuidados?


Nesse sentido, não posso encerrar esse exercício de reflexão sem mencionar o movimento Mulheres Em Lutas (MEL) que, no Paraná, está sendo representado, entre outras mulheres, pela jornalista e vereadora de Curitiba, Giorgia Prates – que foi diretora de Direitos Humanos, Gênero e Raça no SindijorPR. O MEL, integrado por centenas de parlamentares brasileiras, está deflagrando o ‘protocolaço’. A iniciativa, alinhada à Política Nacional de Cuidados, instituída pela Lei federal 15.069/2024, envolve concretamente o pontapé para a tramitação, no país todo, de projetos de lei que buscam fortalecer as mães trabalhadoras. Inclusive, o MEL tem como principal expoente a ex-deputada federal, jornalista e mãe, Manuela D’Ávila – reforçando a importância de ampliarmos a representatividade materna nos espaços de poder.


Essas proposições legislativas, com o mote ‘nenhuma mãe com o salário cortado por cuidar dos filhos’, buscam assegurar o abono das faltas das mulheres para o acompanhamento dos filhos durante consultas médicas e reuniões escolares, sem prejuízo de salários, entre outras medidas. É um passo importantíssimo e sem dúvidas, necessário. Mas, no caso das mulheres jornalistas, um contingente considerável de profissionais no Paraná não tem condições de se beneficiar futuramente dessas propostas, uma vez que a categoria se encontra altamente ‘pejotizada’. E quem trabalha sem garantias de acesso à proteção social, não pode nem piscar: trabalha o quanto a empresa exige, nas condições que a empresa exige e pelo valor que esta se dispõe a pagar. Não há piso, não há jornada, não há possibilidade de faltas abonadas. Só há a fraude trabalhista que, insistentemente ignorada por instâncias superiores, vem empurrando trabalhadores e trabalhadoras Brasil afora à beira do abismo. Pauta oportuna, em especial, por ocasião do maio furta-cor – mês dedicado à saúde mental materna.


Lutar por melhores condições de trabalho é, portanto, meio para ampliar e melhorar a participação feminina no mercado profissional, mas também representa a possibilidade de assegurar proteção à infância e dignidade para as nossas crianças. Não. Não me venham com bombons. A nossa luta é por direitos, efetivos e concretos. E, ainda em ritmo das ‘homenagens’ pelo 11 de maio, reforçamos que o melhor presente para as mães jornalistas é remuneração digna e garantia de trabalho decenteQuando vamos falar sobre isso?

Articulista: Aline de Oliveira Rios
Jornalista, mãe do Vicente e da Betina, doutoranda em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), mestra em Jornalismo (UEPG), integrante do Observatório da Ética Jornalística (ObjETHOs) e diretora de Defesa Corporativa do SindijorPR
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