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08/10/2014

“Ditabranda”: Os anos não foram de chumbo para a Folha de S. Paulo

“Ditabranda”: Os anos não foram de chumbo para a Folha de S. Paulo

Livro que será lançado dia 10 de outubro durante o Enpecom (UFPR), às 20 horas, mostra como a Folha, do regime militar até os dias atuais, se apropriou de momentos históricos para construir sua identidade


A inquietude é um dos fatores que faz do pesquisador um caçador de informação. Há sempre algo que surge e desperta o interesse específico por um acontecimento. André Bonsanto Dias, atualmente Doutorando em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (RJ), teve sua inspiração.


Era 2009 quando Bonsanto se intrigou sobre a memória da imprensa. Mais precisamente sobre como os meios de comunicação costumam relatar seu passado. “Ao acompanhar o caso da “ditabranda”, percebi ali uma situação particular para estudar essas relações. Uma vez que suas repercussões foram breves e logo silenciadas. Então parti para um estudo mais aprofundado sobre o caso”, explicou o publicitário e historiador formado na Universidade Estadual do Centro-Oeste - UNICENTRO.


A pesquisa virou tese de mestrado e agora livro. “O Presente da Memória – Usos do passado e as (re) construções da identidade da Folha de São Paulo, entre o ‘golpe de 64’ e a ‘ditabranda’” foi produzido entre 2010 e 2012, período em que o pesquisador tornara-se Mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).


“O que procurei foi realizar uma espécie de “histórias das memórias” da Folha. Para isso, foi preciso compreender as memórias construídas pelo jornal ao longo do regime– desmistificando algumas versões hegemônicas”, revela André Bonsanto Dias, que lança o livro “O Presente da Memória” durante o VI Enpecom – Encontro de Pesquisa em Comunicação da UFPR, no dia 10 de outubro.


Extra Pauta: Após sua pesquisa, qual a conclusão sobre a atuação da Folha de São Paulo durante a ditadura militar no Brasil?

André Bonsanto Dias: A Folha é um jornal que gosta de produzir sua história. E essa história foi construída, sobretudo, pela propagação de algumas memórias que se tornaram hegemônicas sobre o período. A mais consolidada e que em tese define a identidade que o jornal pretendeu construir ao longo dos anos foi a que o identificou como o “jornal das diretas”. Mas um dos pontos que minha pesquisa tentar abordar é que a memória não é involuntária, ela é articulada para objetivos bem específicos. Desta forma, ela é também passível a manipulações e abusos e o jornal trabalhou, de forma sutil e, por vezes complexa e conturbada, com as próprias memórias do regime militar. Entender como o jornal construiu uma imagem frente ao regime é entender seus próprios jogos, usos e apropriações de identidade. Ao se afirmar o “jornal das diretas” a empresa tenta vender-se, obviamente, como o jornal “que não apoiou a ditadura”. Esse é um discurso comumente empregado pela empresa durante o período de redemocratização e que perdura até hoje. Mas se pegarmos - para nos atermos em apenas um exemplo - as comemorações dos 10 anos da “revolução” em 1974 (era assim que o jornal ainda nomeava a ditadura naquele momento), veremos claramente que o jornal ainda apoiava de forma explícita o regime. É um processo complexo e que, pela utilização seletiva da lembrança e do esquecimento se torna facilmente manipulável. O que procuro é, pelas próprias lembranças do jornal sobre o período, desmistificar um pouco algumas dessas questões.


EP: A linha do tempo do seu livro passa pelos anos de chumbo e vai até o momento democrático no Brasil. Qual a importância da Folha em ambos os contextos?

ABD: Podemos dizer que a Folha vivenciou muito mais o “milagre econômico” do que os “anos de chumbo”. Existiam duas percepções sobre o regime naquele momento. Aqueles que acatavam que se autocensuravam, não tiveram problemas. A Folha no período do “milagre” ainda apoiava o regime e muito se beneficiou com ele. Este é o momento, inclusive, de grande expansão tecnológica da empresa. Obviamente que, para prosperar, o jornal deveria manter uma posição de proximidade com o governo. O Estado autoritário também precisava de um sistema de comunicação sólido e a Folha não é exemplo único nesta questão, obviamente. É o exemplo máximo da modernização conservadora proposta pelos militares, que beneficiou grande parte dos grupos de mídia hegemônicos que atuam hoje em nosso país. Creio que este período deveria ser mais esclarecido, fugindo dos maniqueísmos. É ele que silencia as versões e coloca/cristaliza a imagem da empresa como a porta-voz da redemocratização, por exemplo.


EP: Você acha que o jornal colaborou "mais" para a manutenção dos militares no poder ou pela democratização do país?

ABD: Ela teve uma atuação ambígua e complexa. É difícil nos atermos aos termos de contra e/ou a favor. Ela apoiou até quando achou necessário ou “rentável”. O que precisa ser esclarecido é que, assim como grande parte de nossa imprensa, esses jornais não apoiaram apenas o golpe. Apoiaram o golpe e o regime, o que é uma grande diferença. Nosso processo de redemocratização se deu sem rupturas. Então é possível dizer que ainda mantém fortes traços do autoritarismo vigente naqueles anos. A Folha ajudou no processo de redemocratização porque ele se deu de forma sutil, lenta, gradual e, acima de tudo, segura. Ela não tomou uma iniciativa arriscada, combativa. Pelo contrário, houve uma espécie de acordo tácito entre a empresa e o regime. Um ajudou a garantir a legitimidade do outro. Havia ali, além de um jogo político, claro interesse de mercado. Era um caminho praticamente inevitável, bem diferente do que acontecera no conturbado contexto do golpe, em 1964.


EP: A razão por falarem em "ditabranda" é que, segundo a Folha, no Brasil os militares foram mais "suaves" que em outros países latinos. O que realmente isso quer dizer? Que a Folha não passou por censura?

ABD: Quer dizer que a ditadura foi realmente “branda” com a Folha. Ela não foi cerceada pelos militares, salvo em algumas ocasiões pontuais, o que era praxe. A Folha é o que é hoje graças à proposta de modernização conservadora do regime. Brinca-se, inclusive, que a Folha da Tarde - jornal do grupo que circulou em sua segunda fase de 1967 a 1999 - era o jornal de “maior tiragem” da época, visto que era onde a maior quantidade de “tiras” trabalhava. Enfim, a Folha deflagrou o óbvio ululante, mas não da maneira e nem no contexto mais apropriado.


EP: Qual sua posição em relação a chamada "ditabranda" descrita pela Folha?

ABD: A utilização do neologismo pegou mal para a empresa. Foi uma afirmação infeliz e desnecessária, ainda mais em um país que tem uma relação má resolvida com seu passado recente. Ela surgiu em outro contexto (em um editorial que desferia crítica ao então governo de Hugo Chávez), mas fez ressurgir um debate sobre o papel de nossa imprensa e sua atuação ao longo do regime militar no Brasil que há tempos não se via. Na época, se afirmava que o caso teria causado a maior crise de credibilidade da história da empresa. Verdade ou não, é evidente que a repercussão do caso ajudou a desconstruir um pouco a identidade que a própria empresa tentou consolidar sobre ela ao longo dos anos.


EP: Algo mais que gostaria de acrescentar?

ABD: Creio que esse assunto não se esgotou. Com as efemérides dos 50 anos do golpe e as repercussões da Comissão Nacional da Verdade vemos que há muito ainda a se evidenciar sobre as complexas relações costuradas ao longo da ditadura. Com a entrega do relatório da Comissão proposto para o final do ano e sua possível sugestão de revisão da Leia da Anistia, acredito que muita coisa voltará a ser pautada com reconhecida força no campo midiático. As políticas de memórias utilizadas por nossa grande imprensa nesse contexto são salutares neste sentido. Realizado o mea culpa é como se elas se sentissem à vontade agora, de mãos lavadas, para discutir um acontecimento que ainda nos incomoda.

Autor:Regis Luís Cardoso Fonte:SindijorPR
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